Transmídia


O que é a Transmídia?


Imagem: mosaico com várias imagens da Monalisa com várias expressões faciais

A carinha sorridente amarela respingada com uma gota de sangue é só o ponto de partida. A partir dela, descortina-se não só um universo de super-heróis decadentes e de superpoderes usados como armas militares, como uma série de pequenas histórias paralelas que acontecem independente umas das outras e em formatos diferentes. Juntas, todas essas narrativas contam uma história complexa e multifacetada, que dificilmente teria o mesmo impacto caso contada de forma linear.

"Watchmen", a clássica série em quadrinhos cuja aguardada adaptação finalmente chegou aos cinemas, é um dos muitos exemplos de um novo tipo de ficção – a narrativa transmídia. Nem tudo na história original de Alan Moore e Dave Gibbons era contado em forma de quadrinhos – cada episódio terminava com páginas que poderiam trazer um capítulo de um livro fictício, o prontuário médico de um dos personagens, recortes de páginas de jornal.

Mas com a internet e a digitalização das mídias, essa narrativa que acontece em diferentes plataformas aos poucos vem deixando nichos e tomando conta do mercado de entretenimento. Sites, celulares, redes sociais, games, aplicativos e blogs – peças-chave da cultura digital – são hoje responsáveis por expandir universos criados em livros, filmes, histórias em quadrinhos e programas de TV. Mas eles vão além de simplesmente levar uma grife de entretenimento para outras plataformas. Interligando-se com o produto principal, eles criam tramas paralelas e ações fora da internet que expandem ainda mais a história central. Assim, cria-se um novo vínculo com o antigo leitor/espectador/ouvinte, agora convidado a participar da narrativa.

Mas isso não pressupõe produção de conteúdo ou aquela interatividade em que pode-se mudar o rumo da trama principal. O elemento participativo da narrativa transmídia reside no fato de que a história original pode ser ampliada à medida em que a experiência da mesma possa ser provada em diferentes meios – e isso não quer dizer que esses enredos paralelos tenham que se encontrar num ponto final.

"A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações com outros", explica o teórico Henry Jenkins, criador do termo "narrativa transmídia" em seu livro "Cultura da Convergência", lançado no Brasil. Nessa edição, nos aprofundamos no tema, a começar pela própria campanha de lançamento do filme "Watchmen" – transmídia por natureza.

CONCEITO
O conceito de narrativa transmídia está ligado ao fato de estarmos rodeados por telas, palcos e papéis, o que possibilita as tais multimaneiras de interagir com o público. Interatividade, relacionamento, comportamento social: tudo isso rima com internet. Mas não é só a rede que dá início aos múltiplos enredos em paralelo. Ela começa nos mais variados meios, até o mais analógico deles, o livro.

Nos exemplos acima, selecionamos experimentos transmídia cujo principal produto dentro do ecossistema da história fosse cinema, TV, história em quadrinhos, livro, música ou videogame. Isso quer dizer que vem antes do fenômeno digital a interação, o engajamento e a criação de histórias paralelas seja pelo público ou produtores. A internet apenas acelerou esse processo.

"Esse principio de múltiplos desdobramentos segue uma lógica de mercado, a de ganhar dinheiro de diferentes maneiras", pondera o professor Rogério da Costa, do curso de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, da PUC-SP, e autor do livro "A Cultura Digital".

A questão lucro é realmente relevante. Estratégias transmidiáticas são mais propícias a gerar dinheiro por causa da capilaridade de investimentos. A série de "TV Heroes", por exemplo, se desdobra numa HQ, num site e até num carro (o Nissan Versa foi lançado através do seriado), o que aumenta a participação do público como consumidor. E quando o transmídia soa só como planejamento para divulgar o produto específico?

"Não considero de forma alguma a ideia de transmídia simples ‘estratégia marqueteira’. É uma rica abordagem de comunicação e entretenimento cuja lógica é a exploração plena das capacidades semióticas próprias que cada mídia apresenta", afirma o presidente da Agência Click, Abel Reis. "O que justifica a interligação das mídias é a oportunidade – e naturalmente o retorno esperado – de mobilizar a atenção e a emoção das pessoas. Afinal, nós humanos adoramos estórias bem contadas que de preferência agucem nossas fantasias."

E O BRASIL?
Não por acaso todos os exemplos transmídia dados até agora nesta reportagem são de fora do País. Ainda não há por aqui uma estratégia publicitária ou que conte histórias deliberadamente interligadas. Isso até este ano, quando algumas empresas começaram a acordar para as possibilidades transmidiáticas.

Está em fase de produção o seriado independente "Os Buchas", que a operadora de celular Oi selecionou como vencedor do concurso Oi Multiplataforma 2008 (multiplataforma.oi.com.br). É a história amorosa e sexual de um grupo de amigos de 20 e poucos anos (Beni, funcionário de uma livraria, é o protagonista) contada de forma bem humorada. Buchas é o apelido dado no Rio de Janeiro para "loser", fracassado. No caso, Beni é o mau xavequeiro.

A série será exibida na TV Oi, partes dos capítulos comporão uma websérie e, o principal, cada personagem terá uma microssérie própria para celular – agora, sim, temos histórias paralelas de um mesmo universo sendo contadas em mídias diferentes. "Também haverá um blog para internautas compartilharem histórias de cantadas mal sucedidas, que virarão roteiro das outras temporadas", afirma o autor de "Os Buchas", Álvaro Campos. Por conta da compra da Brasil Telecom pela Oi, ainda não há data definida para a estreia do programa.

Outra iniciativa transmídia brasileira deve vir ainda este ano da publicidade. A agência DM9DDB acabou de criar um departamento interno chamado "grupo de convergência", que une as áreas executiva, de planejamento e criação, antes não tão alinhadas.

"O Brasil nunca fez transmídia porque não resolve necessidades imediatas de clientes, geralmente a principal demanda", afirma o gerente de planejamento da agência, Gustavo Lotufo. A ideia de Joca Guanaes, o idealizador do grupo, é que das discussões saiam iniciativas que ultrapassem os conceitos de comunicação 360° e crossmedia – esses, sim, já bastante usados no Brasil.

A questão não é apenas de criatividade ou competência para executar a narrativa transmídia, mas de elaborar uma trama boa o bastante para justificá-la. Ensina o criador de "Lost", J J. Abrams, na palestra que deu no evento TED: "O mistério da história é mais importante do que a tecnologia para contá-la". (Lucas Pretti e Bruno Galo, da Agência Estado)